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«Chego à Birmânia e o taxista diz-me: ‘És do Sporting? Vocês ontem levaram três’»

«Chego à Birmânia e o taxista diz-me: ‘És do Sporting? Vocês ontem levaram três’»

«Um café com…» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura ou o cinema enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

Na infância, era fã de Jordão, em graúdo fez um documentário sobre Cristiano Ronaldo nas montanhas do Rif, em Marrocos.

«O Cristiano é como uma salina dos Himalaias», diz Nuno Duarte. Aliás, Jel, o «tio» que pôs o país a falar de (e a cantar) «Sal Grosso».

Antes de comediante, músico, bailarino e guru, Nuno já era sportinguista «barraqueiro». Um miúdo que irritava os viscondes na bancada central de Alvalade e que atirava «almofadinhas para a bola» para o relvado no fim dos jogos.

O Sporting está no primeiro lugar isolado pela primeira vez ao fim de quatro anos. O conselho que daria aos adeptos seria «Calma!» [referência ao tema ‘Sal Grosso’]?

«Muita calma!» O adepto do Sporting como é muito apaixonado, mas como já não ganha há algum tempo, às vezes fica muito exacerbado e depois dá efeito contrário. Portanto, o conselho que eu dou é «calma!», «muita calma!».

Esta liderança do Sporting é um sinal do ano atípico que tem sido 2020?

Ainda no sábado estive em Lisboa na manifestação da cultura, no Campo Pequeno, e encontrei o meu amigo Carlão, que é um grande «lampião». Há anos que nos picamos um ao outro. Ele meteu-se comigo por estarmos em primeiro e eu disse-lhe: «Se há ano para sermos campeões é este ano, caraças!» Portanto, até ver, acredito, mas com muita calma.

Quem é mais sportinguista: o «Jel» ou o seu irmão «Falâncio»?

O meu irmão vive isto mais do que eu.

Da última vez em que o Sporting era líder destacado ele foi à TV do clube cantar uma música de natal…

Não deu muita sorte, não. Dei-lhe na cabeça. É o que estava a dizer dos sportinguistas: a mania dos foguetes antes do tempo. Depois, temos de levar com eles…

Houve um sketch em que, prova do ecletismo do clube, vocês foram para um pavilhão fazer claque por uns miúdos do ténis de mesa e gritar «Ping Pong é Spooorting»…

Foi na altura do «Vai tudo abaixo». Tínhamos de inventar coisas todas as semanas e lembrámo-nos daqueles adeptos que vão a todas as modalidades amadoras. É engraçado que, um tempo depois, na claque do Benfica houve uns gajos que criaram uma tarja daquelas com dois paus na ponta a dizer «Ping-pong é Sporting». Só para gozar com aquilo. [risos]

Perder no futebol mais vezes do que o rival não coloca o sportinguista em desvantagem nesses despiques?

Mas o adepto do Sporting não se fica e vai à luta dialética. Não perdemos no picanço.

Nesse contraponto subjaz sempre a ideia de que o Sporting é um clube mais elitista. É de facto assim?

Os meus pais eram da classe trabalhadora, do povo, e éramos Sporting. Essa ideia do Sporting elitista é uma coisa que vem do tempo do Salazar. Tens elites e povo em todos os clubes. Lembro-me de na bancada central onde o meu pai se sentava de haver muito aquele burguês lisboeta. Apesar de só ele ter o lugar cativo, aquilo era um bocado à balda e levava-me a mim, ao meu irmão e iam os meus dois primos que eram também miúdos. Nós gostávamos de levar bandeiras, buzinas, papelinhos… E os velhos mais viscondes ficavam às vezes a olhar de soslaio para a gente, tipo «Ei, lá vêm estes barraqueiros…»

Qual a primeira memória que tem como adepto?

A memória mais antiga que tenho é a de o Sporting ser campeão em 1982 e da final da Taça com o Sp. Braga nesse ano (4-0), em que faltavam poucos minutos para acabar e de já estar toda a gente junto à relva preparada para a invasão de campo. E os jogadores já a chegarem-se para o balneário para fugirem. Lembro-me de ver o Mészáros e o Jordão a fugirem de cuecas e de haver ainda pessoal a continuar a correr atrás deles… No início, eu não ligava muito ao jogo.

Então?

Quando eu era mesmo muito miúdo, tipo 6,7, 8 anos, eu ia ao futebol, mas ver o jogo aborrecia-me. Eu passava o jogo todo à espera de ir buscar as «almofadinhas para a bola». Eram feitas com plástico e palha. E nós, miúdos, no fim íamos buscar aquilo aos lugares e mandar tipo discos voadores para a relva. Pronto, era essa a minha paixão… [risos] Essas memórias para mim representam uma certa magia. Isso não volta.

Também queria ser jogador em miúdo?

Em criança tinha dois sonhos: um era ser jogador de futebol, outro era ser cantor. Embora cante mal, o segundo sonho ainda o vivo. Mas cresci a jogar futebol.

Quem era o seu ídolo?

Jordão. Número 11. Uma máquina! Eu tinha uma camisola número 11 e tudo. Era um jogador fantástico, um bocadinho como o Liedson: magrinho, mas muito oportunista e matador.

Essa foi uma altura apelativa para ser miúdo e do Sporting, não?

Jordão, Manuel Fernandes, Mészáros, Oliveira… E depois houve aquele grande jejum até voltarmos a ser campeões em 2000. Esses jejuns são dramáticos para os clubes porque os miúdos se sentem atraídos por vitórias e por festas. Mas lembro-me que em pequeno ia também ao hóquei, ao andebol… Havia grandes clássicos de pavilhão cheio. Era uma coisa emocional. O último ano em que fui ao futebol regularmente foi quando fomos campeões em 2002. Aqueles dois campeonatos tão rápidos depois de um jejum tão longo preencheram alguma sensação de vazio que tivesse. Depois, comecei a dedicar-me mais à comédia e concentrei-me no trabalho. O futebol também se tornou numa coisa mais organizada, para o bem e para o mal.

Isso ajudou também a afastar-se?

De há uns 20, 30 anos para cá, o futebol começou a ter tanta atenção mediática, que acabou por ser a canalização da frustração de muita gente. Veio ocupar um lugar que tinha a política noutros tempos. Uma crença que motivava a arruaça e a ofensa. Isso é péssimo. Aquela coisa de claques transportadas em gaiolas de alta segurança pela polícia. É uma coisa que me afasta. Não me atrai. E aí pensas: «Espera lá. Vou com o meu filho para aqui?»

É um caminho sem retorno?

Isso é muito fomentado pelos dirigentes. Vai ter de passar mais dez ou vinte anos para vir uma nova classe de dirigentes nos grandes. Alguns que tenham sido jogadores ou treinadores, tipo Rui Costa, Cristiano Ronaldo, André Villas-Boas, que tenham experiência internacional e percebam que só têm a ganhar se trabalharem em conjunto.

O Jel é coautor do documentário «Dia de Jogo», sobre a paixão de uns miúdos em Marrocos pelo Cristiano Ronaldo. Em sua opinião, explora-se pouco esse lado cultural do futebol?

Em Espanha, Itália, Inglaterra, Brasil, Argentina há muito mais arte ligada ao futebol: livros, músicas, séries, documentários… Cá estamos muito atrasados nisso. A nossa elite cultural olha muitas vezes para o futebol de soslaio, como uma coisa baixa, uma cena do povo, bruta, mas há muita beleza estética no futebol.

E, no entanto, o futebol tem um papel cultural e social que extravasa o que se passa no relvado.

Claro. Por exemplo, tive uma experiência incrível com o futebol português e com o Cristiano.

Como foi?

Há dez anos, quando a Birmânia (hoje Myanmar) abriu as fronteiras para estrangeiros, eu e a minha mulher estávamos na Tailândia e aproveitámos para pedir o visto na embaixada e entrar no país. Ora, logo à chegada, apanhámos um táxi para o hotel e o taxista começa em inglês a perguntar-me de onde somos, etc… «Portugal? Mas de onde?» E eu: «Lisboa.» E ele: «Sporting ou Benfica?» E eu, «alto lá…»: «Sporting…» E o gajo vira-se para mim e diz-me assim, «Vocês não estão bem. Ainda ontem levaram três [3-1 do Gent para a Liga Europa, em novembro de 2010]…» [risos] Na Birmânia! Onde praticamente não havia turistas. No meio de Yangon éramos vistos como extraterrestres, mas as capas dos jornais eram só futebol internacional. Quando eles descobriam que éramos portugueses ficavam malucos: sabiam os nomes todos dos jogadores da seleção. Mas houve uma cena mais engraçada…

Qual?

Viajámos de avião uns mil e tal quilómetros até uma praia paradisíaca praticamente virgem. Alugámos uma mota para ir à cidade mais próxima e no meio de uma estrada de terra batida, sem luz nem nada, damos com uma cabana. Está lá um velho a fumar e atrás dele está o quê? Um grande poster do Cristiano Ronaldo! E aí é que tens mesmo noção do impacto que ele tem. Ali, dizíamos que éramos portugueses e a cara deles brilhava. «Portugal! Cristiano Ronaldo! João Moutinho!»

É um pouco também esse o espírito do documentário «Dia de Jogo», não?

Como o futebol é se calhar a atividade mais transversal de todo o mundo. Muitas vezes, os futebolistas não têm bem a noção do impacto que têm no mundo todo. Mais até do que a música. O Cristiano Ronaldo é uma figura mundial, transversal. A cena dos miúdos, foi um bocadinho o que eu fui apanhar. A maneira como ele os influencia e faz diferença na vida deles. O futebol ajuda aqueles miúdos a acreditarem em qualquer coisa.

O Cristiano Ronaldo é então o futebolista com mais «sal grosso» que há?

Aquilo é uma salina dos Himalaias. Mas há outros, como o Neymar. O jogador que eu vi com mais «sal grosso», que é aquilo a que chamo a boa disposição, sorriso na cara, etc, foi o Ronaldinho Gaúcho. Pá, esse gajo era o rei do «sal grosso». O gajo jogava e tinha prazer naquilo. Jogava a rir-se. Outro com «sal grosso» era o Romário. E, claro, o grande Maradona.

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