Artigo: Novos paradigmas e o mundo digita.

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Por Juacy da Silva

O avanço científico e tecnológico tem contribuído, com uma velocidade jamais vista na história humana, para o surgimento tanto de novos produtos que diariamente chegam ao “mercado” , cujo consumo é estimulado pelo marketing e pela propaganda comercial, que geram o nefasto consumismo, mais lixo (resíduos sólidos) e o endividamento das pessoas e famílias; quanto para novas formas de relações sociais, econômicas, políticas, culturais e religiosas.

Ao mesmo tempo em que tais relações supostamente aproximam (virtualmente) as pessoas, também colocam-nas em contato, muitas vezes com pessoas totalmente desconhecidas que acabam se tornando “intimas”, mas que podem também aumentar o grau de solidão e o isolamento físico; além do aspecto da “adição”, vício, extremamente deletério como todos os vícios que distorcem a maneira como cada pessoa percebe e interpreta a realidade que a cerca ou em que esteja inserida.

Uma característica bem conhecida é a chamada “bolha virtual”, onde as pessoas se juntam em alguma plataforma ou rede social e passam a interagir digitalmente, tanto na forma escrita, através das mensagens (msg) de texto, com uma linguagem diferente, quase um novo alfabeto; e também de forma sonora , através de mensagens de voz e a forma mais completa, quando conseguimos juntar as três dimensões: texto, voz e vídeo (imagem), como nas “vídeo chamadas” e nas reuniões, seminários, conferências, simpósios ou rodas de conversa tão comuns tanto em grupos virtuais, inclusive familiares, quanto também utilizados por empresas públicas, privadas e até organizações políticas, culturais e religiosas.

Interessante tudo isso. Posso perceber o ritmo desta mudança em minha vida pessoal e familiar. Quando em 1974/1976 vim aos Estados Unidos para realizar curso de mestrado em sociologia, apesar de que naquela época já com certa experiência profissional,  com 32 anos, três filhas bem pequenas: uma com 4 meses, outra com ano e 9 meses e a primeira, com 3 anos e cinco meses, professor universitário jamais tinha visto um computador em minha vida e para mim foi um “horror” ter que aprender estatística e linguagem de computador (fortran e outras), para conseguir trabalhar com dados estatísticos, principalmente quando tive que escrever (em inglês) a tese de mestrado, construindo tabelas, gráficos etc.

Hoje com 7 anos, meu neto caçula, que nasceu na Bélgica e mora em Roma, já tem celular, tem WhatsApp, sabe enviar msg de voz, sabe fazer vídeos, ou seja, uma realidade totalmente diferente da época a que me referi antes.

Quando regressei ao Brasil levei comigo com um certo “orgulho” por que em nosso país essas coisas eram raras e muito caras, uma maquininha “calculadora científica” (HP), que realizava inúmeras operações completas com muita velocidade e também uma maquina de escrever eletrônica, um micro ondas e um projetor de slides. Hoje essas coisas já não existe mais e foram ultrapassadas, da mesma forma que tantas outras invenções tecnológicas que surgiram entre a década de 1970 e o ano de 2000. Isto também acelera a cultura da obsolescência muito rápida e a economia do descarte e a geração enorme de outro tipo de lixo que é o lixo eletrônico.

Naquela época não existia os “famosos” PCs (personal computer) , computadores pessoais enormes, caríssimos, de mesa, não existia internet, não existia email, muito menos redes sociais, não existia celular, falar ao telefone dos EUA com familiares no Brasil, como em Cuiabá ou qualquer outra cidade, demorava horas para que as ligações fossem  realizadas e o custo de uma ligação de poucos minutos era proibitivo.

Muito diferente de hoje com os grupos de família no whats a gente consegue fazer uma reunião virtual com pessoas  estando na Califórnia, no Colorado, em Roma, Cuiabá, no Rio de Janeiro, na Virginia ou Maryland, enfim, em diferentes partes deste mundo globalizado, graças, em grande parte, a tais avanços científicos e tecnológicos, vendo e conversando todo mundo ao mesmo tempo, como de fato ocorre em nossas reuniões de família quando estamos fisicamente juntos/juntas e, melhor ainda, de graça, sem gastar nada, a não ser o custo dos serviços dos provedores de internet e a posse de um computador portatil (lap top/note book) ou de um celular, que serve para falar, fotografar, filmar, arquivar documentos, agora já na chamada “nuvem”.

Na era digital tudo está mudando com muita amplitude, intensidade e velocidade, quem não se adaptar a este processo será colocado à margem desta nova sociedade digital. Quando muitos países, como o Brasil, nem conseguiram acabar/ superar o analfabetismo e o analfabetismo funcional; estamos diante de uma nova realidade que é o analfabetismo digital.

Essas pessoas, seja por falta de acesso à internet/rede mundial de computadores (https:// – www) tanto por falta de disponibilidade da mesma em regiões, sejam remotas ou mesmo dentro de grandes aglomerados urbanos; seja por falta de renda para poder pagar por este acesso/serviço e também para adquirir um aparelho celular ou computador acabam ficando `a margem desta sociedade digital.

Existe também a questão social e econômica, que afetam os estudantes – crianças, adolescentes e jovens. Normalmente as escolas particulares que atendem alunos e alunas das famílias ricas, classe média ou mais abastadas possuem acesso a tais redes, as chamadas banda larga e de alta velocidade e ainda disponibilizam tanto para docentes quanto alunos os equipamentos necessários para estarem integrados e inseridos na chamada era digital, além de que em suas residências também tais equipamentos já estão disponíveis desde tenra idade, como já ocorre amplamente nos países desenvolvidos.

Isto, todavia, não é a realidade das escolas públicas na quase totalidade do Brasil, principalmente as escolas situadas nas regiões Nordeste e Norte, das periferias urbanas e rurais, onde a grande ou quase totalidade das pessoas pertence às camadas pobres e excluídas da sociedade. Boa parte dessas escolas não está ligadas à internet de banda larga e com alta velocidade e nem dispõem de equipamentos para professores/professoras e alunos/alunas e essas crianças, adolescentes e jovens sendo de famílias pobres, que muitas vezes nem renda para se alimentar possuem, jamais terão condições de adquirirem tais equipamentos e nem recursos para pagar um provedor com rede de alta velocidade. Essas pessoas serão mais uma vez excluídas, ampliando o processo de exclusão a que são submetidas.

De  acordo com matéria do Jornal O Estado de Minas Gerais, em 2021 existiam no Brasil 16,9 milhões de sites/blogs, mas apenas 1% garantiam ou possibilitavam o acesso `as pessoas com deficiência, excluindo nada menos do que 17,1 milhões dessas pessoas.

Quanto à existência de internet nas escolas públicas no ano de 2020 constatou-se que 9,5 mil não tinham internet e dessas 3,4 mil não tinham sequer energia elétrica e milhares nem instalações sanitárias. Este é o retrato de como nossos governantes tratam a educação, apesar de sempre enganado o povo com suas demagogias e mentiras.

Diversas fontes apontam que 48,6% das crianças entre 10 e 14 anos, geralmente, filhos e filhas de família que vivem em situação de pobreza e ou de pobreza absoluta não tem acesso a internet e nem sequer acesso à alimentação e fazem parte dos 33 milhões de pessoas que passam fome em nosso país.

Neste particular é o círculo vicioso, pobreza gerando pobreza; miséria reproduzindo miséria; exclusão gerando mais exclusão, inclusive exclusão digital que reforça todas as demais formas de exclusão nesta nova sociedade e nova economia, onde o analfabeto digital será um verdadeiro pária social.

Outro grupo que também acaba marginalizado e fora deste circuito da era digital são as pessoas idosas, principalmente nos países pobres e até mesmo os de renda média (como o Brasil) que, tanto as que pertencem às camadas empobrecidas e enfrentam os mesmos problemas de falta de recursos, renda para a aquisição dos equipamentos e conexão em redes de provedores, quanto, também, no aspecto geral, mesmo as pertencentes às camadas mais abastadas ou as vezes por terem baixo nível educacional e idade “avançada” tem grandes dificuldades para usarem plenamente os serviços que a era digital oferece e  exige.

O mesmo levantamento identificou que 42,5% das pessoas idosas em 2019 não tinham acesso `a internet, deixando excluídas em torno de 13,3 milhões de pessoas, que pela condição da idade já são excluídas e as vezes até vivem em situação de abandono.

De forma semelhante outro grupo mais excluído ainda do que já se encontra são as pessoas com deficiência, seja visual, física ou intelectual,

O avanço da era digital tanto no sistema financeiro, quando nas demais empresas quanto nas organizações públicas, como o Egoverno ou os bancos digitais são verdadeiros suplícios para as pessoas idosas, com raras exceções e as vezes propiciam oportunidades para que sejam vítimas de golpistas e estelionatários com mais facilidade.

Em todas as redes sociais como Whats app, Facebook, Instagram, Linkedin, Tik Tok, Telegram, twitter e tantas outras, existem centenas de milhares ou milhões de pessoas em todos os países, que ao redor do mundo são mais de 4,5 bilhões de pessoas. É um verdadeiro burburinho digital, igual a de uma feira livre ou dessas ruas de comércio popular, como existem no Rio de Janeiro, São Paulo ou em outras capitais ou qualquer grande cidade.

Neste “borburinho digital”, todo mundo escrevendo, tentando “postar” seus argumentos, defendendo suas ideias e como em todo ambiente tumultuado, também nas redes sociais ocorrem conflitos e as vezes de muita intensidade, como os que presenciamos durante as recentes eleições gerais no Brasil em que, além das “fake news”, também havia uma verdadeira campanha de ódio, quando até mesmo em grupos familiares ocorreram conflitos políticos, partidários e ideológicos que motivaram inimizades e trocas de ofensas pessoais, o que não deixa de ser lamentável.

Muitas pessoas geralmente participam de diversos grupos de discussões e troca de mensagens virtuais e chegam a utilizar os meios virtuais para reuniões de trabalho (as chamadas reuniões, conferências, simpósios e até mesmo cursos virtuais), atendendo, assim, formas mais rápidas e mais ampliadas e com custos reduzidos para refletirem sobre determinados temas/assuntos e realizarem atividades que, presencialmente, seriam mais difíceis, complexas e mais caras/onerosas.

Todavia, podemos observar e notar também muita perda de tempo com discussões supérfluas em grupos virtuais, muitas vezes promovendo “fake news”, disseminação de mensagens de ódio, intolerância, ofensas pessoais, discriminação, preconceitos, ameaças, desinformação, estelionato, homofobia, “bullying”, racismo e tantas outras “discussões” improdutivas e negativas.

Precisamos saber utilizar melhor essas tecnologias que o avanço científico e tecnológico tem oferecido à humanidade para dissemir mensagens positivas, ampliar nossos conhecimentos, transmitir valores, ideias e trocas de experiência que ajudam a fortalecer a participação popular e social, a solidariedade humana, o amor em família e também aprendermos a ser mais tolerantes, dialogarmos com empatia, com respeito a diferentes formas de pensar, sentir e agir.

Assim, podemos aproveitar a experiência e conhecimento de tantas pessoas com uma formação e um cabedal de saberes imenso que pode ajudar a entendermos melhor a realidade que nos cerca, aprofundar nossos conhecimentos sobre tantos temas importantes, a chamada “pauta positiva”, onde um grupo desses, como de WhatsApp ou outro similar, pode escolher, digamos, um tema/assunto e, a cada semana, em torno do mesmo todas as pessoas do grupo podem apresentar (“postar” como se diz) suas posições, seus argumentos e, ao final pode ser feita uma síntese e, assim, a cada semana um novo assunto é selecionado.

Por exemplo, quantos temas, desafios, problemas que afetam o Brasil, cada estado , cada município e cada comunidade podem ser selecionados? Assim, aos poucos vamos conhecendo mais sobre tudo o que está em nossa volta e, neste sentido, a máxima bíblica se aplica perfeitamente “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.

Além das pessoas que participam das plataformas e das redes sociais a internet é na verdade a maior biblioteca do mundo, onde os conhecimentos estão à disposição, na maior parte das vezes, gratuitamente e ao alcance de quem esteja conectado à mesma. Tudo acessível através dos “sites” de busca, incluindo relatórios técnicos, científicos, artigos, resultados de pesquisas, tudo, como se diz “na palma da mão” e com alguns simples “cliques”.

Podemos dialogar virtualmente sobre questões ambientais; questões econômicas; questões sociais; questões culturais, questões religiosas, geopolítica,  desdobrando cada um desses grandes tópicos em temas mais “simples”, “mais complexos” ou concretos como desemprego; subemprego, informalidade no mercado de trabalho; o desmatamento, as queimadas, a degradação ambiental, a mineração, os avanços tecnológicos e o futuro do emprego/trabalho; endividamento das famílias; burocracia estatal e empresarial; conflitos sociais; violência em suas diversas manifestações; sistemas políticos e eleitorais, saúde pública, envelhecimento saudável, enfim, cada grupo pode escolher seus temas, através da participação de todas as pessoas que fazem parte de cada grupo.

Essas redes também podem ser valiosos instrumentos para realizarmos, não apenas as famosas “vaquinhas” com pedidos de ajuda financeira a pessoas que as vezes estão desesperadas e não tem a quem recorrer, mas também podemos realizar campanhas educativas como: combate ao consumismo; combate ao desperdício; reciclagem; a poluição do ar, do solo e das águas; as mudanças climáticas; a sustentabilidade; as florestas, a arborização urbana, a agricultura urbana; agroecologia/economia solidária; cuidados com a saúde/educação para a saúde; alcoolismo, tabagismo; outras dependências químicas; racismo, feminicídio, violência contra as mulheres, contra as crianças, contra idosos/idosas, discriminação contra determinados grupos como pessoas com deficiência, origem étnica e tantos outros.

Creio que qualquer que seja o resultado dos avanços cientifico e tecnológico, cabe aos seres humanos entender como esses avanços podem ser utilizados para o bem comum, para a melhoria da qualidade de vida e não para formas distorcidas e as vezes até criminosas ou serem apropriados por uma pequeno grupo que busca apenas o enriquecimento pessoal, familiar ou de uma camada privilegiada, que são os chamados “donos do poder”.

Neste caso, de quem realmente se beneficia dos avanços científicos e tecnológicos e da chamada economia digital, um tema importante é a democratização tanto ao acesso quanto a propriedade desses meios digitais. Da mesma forma em que a Doutrina Social da Igreja (DSI) afirma textualmente que “sobre toda propriedade recai uma hipoteca social”, podemos também entender e dizer que sobre os avanços científico e tecnológico e sobre a economia digital recai uma hipoteca social, mesmo que este seja uma “propriedade intelectual”, individual ou coletiva a mesma deriva de uma acumulação social e histórica do conhecimento produzido ao longo de séculos e milênios, por centros de estudos e pesquisas geralmente custeados com recursos da coletividade.

Por isso, precisamos “pautar” nossa participação e nosso agir nesses grupos por valores e formas que unam, agreguem e fortaleçam nossos laços sociais e jamais em formas que distanciam e geram conflitos. Em si, os avanços científicos e tecnológicos geram produtos e processos que podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal, a prova disso são os conflitos e as guerras, que a cada ano se tornam mais virulentos e mortíferos, graças a tais avanços.

Precisamos promover sempre que possível, em todos os lugares, inclusive nas redes sociais e nas plataformas digitais; a CULTURA DA PAZ, jamais os conflitos, a guerra e, para tanto, precisamos mudar, radicalmente nossos paradigmas, inclusive os paradigmas utilizados na era digital.

Mas para que tudo isto seja possível é fundamental, imperioso e necessário que seja articulada uma verdadeira luta pela democratização e universalização do acesso aos meios de comunicação, principalmente o acesso à internet, porta de entrada para a plenitude democrática, de verdade e não apenas a defesa de um conceito abstrato. O analfabeto digital reforça o contingente dos analfabetos políticos e coloca em risco a nossa já tão frágil democracia.

Em um país com mais de 40 milhões ou até 50 milhões de pessoas, consideradas analfabetas digitais fica muito complicado falar em cidadania,  direitos humanos, em democracia e estado de direito. Precisamos com urgência mudar radicalmente vários de nossos paradigmas, o Brasil não pode continuar na 38ª posição no ranking mundial de disponibilidade de internet, o último ou penúltimo entre os países do G20. Isto é mais uma vergonha nacional, entre tantas outras!

Juacy da Silva, 80 anos, professor universitário, titular e aposentado UFMT, sociólogo, mestre em sociologia, ambientalista, articulador da PEI Pastoral da Ecologia Integral. Email profjuacy@yahoo.com.br Instagram @profjuacy Whats app 65 9 9272 0052

 Fonte: https://odocumento.com.br

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