Da máscara arquetípica à realidade afetiva: A necessidade da evolução jurídica da figura da madrasta na família contemporânea.

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Por Fabiano Rabaneda dos Santos

É ideia do consciente coletivo – inatos, universais e hereditários – a figura da madrasta malvada ou da mulher malévola, expressada de forma recorrente nos contos de fadas de diversas culturas como a Rainha Má de Branca de Neve ou a madrasta de Cinderela. Essas figuras são frequentemente retratadas como invejosas, manipuladoras e em oposição à heroína inocente.

Manifestando-se como um arquétipo – Carl Gustav Jung – o fato de esse tema aparecer em diversas culturas sugere que ele pode ter raízes no inconsciente coletivo, que em termos junguianos, a madrasta malvada pode representar uma faceta do arquétipo da sombra, sob o aspecto rejeitado ou não reconhecidos do self, ou do arquétipo da “anima/animus”, no aspecto feminino da psique masculina ou vice-versa.

A madrasta malvada, do ponto de vista junguiano, representa o desconhecido e o temido na psique, particularmente em relação às relações maternais. Enquanto a mãe biológica muitas vezes é idealizada em contos de fadas como uma figura de puro amor e sacrifício, a madrasta surge como seu oposto direto, representando aspectos mais sombrios ou não aceitos da maternidade e feminilidade.

O contraste entre a mãe biológica e a madrasta nos contos pode refletir nas mais diversas pessoas tensões internas entre o ego – a parte consciente da personalidade – e a sombra, bem como entre o ego e a anima/animus. Através do confronto com a madrasta, o herói ou heroína dos contos frequentemente cresce e se desenvolve, simbolizando um processo de individuação.

A difícil tarefa de interpretar a rica tapeçaria dos motivos recorrentes da madrasta malvada nos contos de fadas nos remeterá, inevitavelmente, a estudar a representação simbólica das profundezas da psique humana e dos desafios que encontramos para a autocompreensão.

Sob o contexto histórico, em sociedades mais antigas, como a egípcia, a figura da madrasta estava ligada à poligamia, principalmente originadas na realeza, situações em que os enteados tinham relações próximas com madrastas e padrastos.

Com o cristianismo, a monogamia tornou-se normativa, mas a morte prematura era comum, o que levava ao recasamento e à formação de famílias recompostas.  Ainda que os contos de fadas medievais frequentemente retratavam madrastas como vilãs, refletindo talvez uma desconfiança cultural em relação a essas figuras – talvez daí o arquétipo – com a urbanização e industrialização, as funções e estruturas familiares começaram a mudar de modo que em algumas jurisdições europeias, começaram a surgir leis que reconheciam certos direitos e responsabilidades dos padrastos e madrastas, especialmente em relação ao bem-estar do enteado.

As configurações familiares têm experimentado mudanças significativas nas últimas décadas. A imagem tradicional da família – constituída por pai, mãe e filhos biológicos – não abrange mais toda a diversidade e complexidade das relações familiares contemporâneas. As famílias recompostas – muitas vezes referida como família mosaico – são apenas uma das muitas formas que emergiram nesse cenário em transformação, estando formada quando um ou ambos os parceiros, que já têm filhos de relacionamentos anteriores, estabelecem uma nova união.

De características peculiares, as famílias recompostas têm por desafio integrar filhos de diferentes casamentos ou relacionamentos, já que – até mesmo pelo arquétipo da maldade – é experimentado tensões ou rivalidades entre os enteados ou entre os enteados e seus padrastos/madrastas.

No curso Clínica do Direito, o professor Rodrigo da Cunha Pereira aborda a principiologia do direito de família e sua aplicação prática e ele destaca o princípio da afetividade, ressaltando que, nos tempos atuais a família passou a ser vista menos como um centro econômico e de procriação e mais como o espaço de amor, valorização e formação individual. Para o professor, o afeto se consolidou como um valor jurídico importante de tal forma a ser elevado à condição de princípio.

Desta maneira, o princípio da afetividade passa a ser o grande vetor e catalisador do direito de família contemporâneo, representando uma evolução significativa na compreensão dos laços familiares. O afeto não se baseia exclusivamente em vínculos biológicos, mas na conexão emocional e nas experiências compartilhadas. Esse princípio é particularmente relevante ao considerar a relação entre madrastas (ou padrastos) e enteados, onde o vínculo socioafetivo pode muitas vezes ser mais significativo do que qualquer outro critério.

No REsp 1717167/DF, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o vínculo socioafetivo consolidado ao longo dos anos deve ser considerado como elemento relevante para o estabelecimento da parentalidade, podendo, em casos específicos, ser flexibilizada a regra que exige uma diferença mínima de dezesseis anos entre o adotante e o adotando. No caso em análise, apesar da diferença de idade entre o padrasto (adotante) e a enteada (adotanda) ser de apenas doze anos, foi destacado o longo período de convivência e a existência de uma relação paterno-filial baseada no afeto. Assim, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a adoção proposta visava oficializar uma relação já existente e não criar uma família artificial ou trazer prejuízos psicológicos à adotanda. Portanto, foi reconhecida a necessidade de instrução probatória para avaliar a existência do vínculo socioafetivo, flexibilizando o requisito de diferença de idade previsto no § 3º do artigo 42 do ECA. O recurso especial foi, assim, provido.

De forma inovadora para a época, o Poder Judiciário do Estado de Mato Grosso, na decisão da Quarta Vara Especializada de Família e Sucessões da Comarca de Cuiabá-MT, reconheceu a existência da maternidade socioafetiva, baseada nos elementos caracterizadores da posse do estado de filho. Tal reconhecimento foi sustentado por provas documentais e corroborado por um relatório de estudo social. Em sua fundamentação, o juiz Gilperes Fernandes da Silva destacou a necessidade do Judiciário em tutelar relações baseadas no afeto. Além disso, a decisão anotou que, estando presentes os elementos nome, trato e fama, a sentença que reconhece a maternidade socioafetiva está de acordo com o ordenamento jurídico. Dessa forma, o pedido foi julgado procedente, consolidando a relação de maternidade entre as partes com base no afeto e nas evidências apresentadas no processo.

Verifica-se que o papel da madrasta, embora historicamente estigmatizado, tem se transformado à medida que a socioafetividade é reconhecida como fundamento das relações familiares e – assim como o padrasto –, pode desenvolver um vínculo afetivo forte e significativo com o enteado, que pode ser tão profundo quanto qualquer relação biológica.

Embora assumir o papel de madrasta traga desafios relacionados a estigmas culturais, lealdades divididas na família e a necessidade de navegar em uma posição parental sem a autoridade natural de um vínculo biológico e – não menos – jurídico, é fato que tal fenômeno merece acolhimento nas relações da parentalidade.

Fabiano Rabaneda dos Santos é advogado especialista em direito de família e sucessões.

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